Câmara algarvia quer entregar água a privados para pagar dívidas
Em todo o país são mais de três dezenas os municípios que entregaram a distribuição da água a empresas privadas. Se tudo correr como está previsto, dentro de alguns meses, na lista passará a figurar mais um: o de Vila Real de Sto. António.
A decisão já foi aprovada pela autarquia e lançado o concurso de concessão das águas e saneamento. O objectivo essencial foi assumido pelo seu presidente, no decorrer da sessão em que a decisão foi tomada: arranjar dinheiro para pagar algumas das muitas dívidas da autarquia. Na respectiva acta pode ler-se que Luís Gomes assumiu que “a verba servirá para aliviar a dívida da Câmara”, justificando que boa parte dela foi contraída para fazer face aos “investimentos realizados nas infraestruturas de água e saneamento básico”.
Em resposta a dúvidas colocadas por vereadores da oposição, o autarca garantiu que esta opção não irá onerar excessivamente os munícipes, avançando que os aumentos dos tarifários serão “na ordem dos 4 ou 5%”. Luís Gomes desvalorizou os problemas que a concessão das águas tem trazido a muitos municípios do país, alegando que, entretanto, a entidade reguladora do sector impõs condições que salvaguardam o interesse público nos novos contratos.
Caso a concessão seja concretizada isso não implicará o fim da empresa municipal que, actualmente, tem aquele serviço a seu cargo, a VRSA-SGU. O presidente da Câmara diz que ela vai manter-se em funcionamento, até porque tem outras competências que continuará a assegurar. Quanto aos trabalhadores da VRSA-SGU, poderão manter-se na empresa municipal ou transitar para a privada que passe a fazer a distribuição das águas.
Entertanto, já foi lançado o concurso, que define ser o prazo de concessão das águas de 30 anos e que indica que ganhará o contrato a empresa que apresente a proposta economicamente mais vantajosa para o município.
Lucros privados, prejuízos públicos
Esta decisão da Câmara de Vila Real de Sto. António surge em contra-ciclo com as orientações definidas pelo actual Governo para este sector. No seu programa está expressa a vontade de pôr um ponto final a este tipo de concessões e, inclusivamente, defende a renegociação de contratos em vigor que se revelam desastrosos para o interesse público. Entretanto, no Parlamento, também já deram entrada propostas do Bloco de Esquerda e do PCP que, no essencial, vão no mesmo sentido.
A concessão da distribuição das águas tem dado origem a muitas queixas, conflitos, manifestações e processos judiciais. Num relatório publicado em 2014, o Tribunal de Contas fez uma radiografia arrasadora destes negócios que, na esmagadora maioria dos casos, garantem elevados lucros às empresas concessionárias, em prejuízo das autarquias e das populações.
Um das razões para isso é a inscrição nos contratos de concessão de previsões irrealistas em aspectos como o número de habitantes (e, por consequência, de consumidores) que os concelhos vão ter nos anos seguintes e do volume da água que irá ser consumida. Normalmente, estes dados estão sobrevalorizados, o que leva a que, ao fim de poucos anos, as empresas concessionárias venham alegar que a taxa de rentabilidade acordada não está a ser cumprida e venham exigir a reposição do equilíbrio financeiro, uma possibilidade que também está prevista no contrato.
Isso pode implicar que as Câmaras tenham que indemnizar as empresas; que estas não realizem os investimentos previstos; que não paguem aquilo que deviam às autarquias, como compensação por ficarem com o negócio, ou que os preços ao consumidor sofram grandes aumentos.
O caso mais grave é o de Barcelos. A empresa concessionária reclamou à Câmara uma indemnização milionária de 172 milhões de euros. Os tribunais deram-lhe razão e as duas partes acabaram por chegar um acordo, que, ainda assim, passa por a autarquia pagar 87 milhões de euros para ter de volta a gestão da distribuição da água no seu concelho.
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